29.7.06

Tradução de Soft and Hard de Jean Luc Godard

Ainda procurávamos o caminho em direção
ao nosso discurso...

Ainda era a época dos massacres diários em Beirute.

E já era a época dos gloriosos vôos a Marte e Vênus.

Era o tempo do triunfo da televisão privada...

e do incrível sucesso do dólar...

a época do enterro das árvores na Floresta Negra....

e da primeira derrota de McEnroe.

A época dos computadores de quinta geração...

... e da fome na África.

Mais que nunca, foi a época em que
todas as águas do oceano...

...não puderam lavar as manchas
de sangue dos intelectuais.

Foi também o tempo da penúltima
sessão de análise.

E da última sessão de cinema.

Na verdade, não procurávamos mais...

o caminho do nosso discurso...

...porque se falava menos...
e mais tranquilamente...

Não faltavam temas para as conversas.

Ou melhor...sim...

O que não faltava eram objetos...

Objetos de massa. Cada qual com seu próprio nome....

Massas e massas de nomes...

Mas os temas, verdadeiros ou falsos,
haviam desaparecido....

Nada que tenha sido sobre ou sob eles...

... eles tinham perdido todo o contato com o mundo.

Sua inteligência era perfeitamente lúcida.

Dobrada sobre si mesma, é verdade,
com uma intensidade atroz, mas lúcida...

Não... era sua alma que estava louca...

Tudo pertencia a ele,
mas isso era só um detalhe.

O importante era descobrir a quem
ele pertencia....

Quantos poderes tenebrosos estariam
no direito de reivindicá-lo?

Uma carta chega a uma família.
Ela foi escrita por um filho que é pensionista.

O pai abre a carta, a lê, e, enraivecido,
a joga sobre a mesa dizendo:

“Se esta é a maneira como ele pede,
não há qualquer chance de que eu o envie dinheiro.”

A mãe, inquieta, o pergunta:
“Meu Deus, o que foi que ele escreveu?”

E o pai lê a carta num tom sério:

“Querido pai, estou quebrado.

Por favor me mande imediatamente algum dinheiro.
Seu filho.”

A mãe pega a carta, a lê, e balança a cabeça:

“Eu não vejo nada de errado com esta carta.
Ela é justa.”

E ela a lê num tom afetuoso:

“Querido pai, estou quebrado.
Por favor me mande imediatamente algum dinheiro.
Seu filho.”

“Claro, é outra coisa”, diz então o pai.

Por que nunca falamos sobre a fábrica
Dizer: “usina”, dizer: “esse lugar”.

Nada além disso. Somente “fábrica”
Somente isso.

Estou pensando num lugar louco.

Louco no sentido mais estrito do mundo, ou seja:
Um lugar sem quaisquer limites.

Um lugar infinito.

Como se pode estar lá?

E quando se está, o que acontece depois?

Será que é possível dizer isso sem que as palavras
acabem,como sempre, por distorcer a coisa?

Será que é possível dizer isso,
para um fato tão bem estabelecido?

“A fábrica”. Imutável, eterna...fatal.

Um lugar fictício, um espaço irreal...

concebido por uma atividade vã e sublime

que testemunha toda a atividade humana,
e a sua própria.

Talvez o que eu possa dizer,
É que quando você nesse lugar...

...quando você aí está de fato,
é muito difícil falar qualquer coisa sobre ele

Porque é um lugar vazio, e sufocante,
ao mesmo tempo...

E morto, absolutamente morto

Aparentemente vivo, mas morto...

Evidentemente um lugar de mentira, por que
dizemos que vivemos e morremos nele...

“Olá, estou trabalhando...
Estão à procura do desconhecido...”

Penso que esta é a única coisa
que você pode fazer em uma fábrica

Você pode olhar...olhar...olhar...

Talvez tudo o que se pode fazer é olhar

Em sonho, diferentes diretores participam

Um mistura ação e visão,
outro as opõe.

Para o primeiro, o sujeito e as coisas
são idênticos.

Para o outro, são apenas objetos.

Um dissolve o olhar
entre os fenômenos,

o outro captura os fenômenos.

Um olha com os olhos fechados,

o outro com os olhos abertos.

De um lado, um monólogo interior,

De outro, um diálogo.

Os sonhos do norte são mais pálidos
e mais violentos

porque eles fazem explodir as imagens.

Mas é verdade que quanto às imagens...

...uma meia volta em direção ao sul,
é mais importante que um movimento em direção ao norte

Então, porque faço imagens,
ao invés de fazer crianças...

...isso me impede de ser um ser humano?

Quando, oh quando...?

Quando a criação existiu livre da forma?
Quando?

Oh, quando tivemos seu destino?

Ela foi... e foi sem sonho,
nem acordada, nem adormecida.

Foi apenas um instante, uma canção, uma única
voz...

...impossível de evocar

Um sorriso que chama

Uma vez, houve uma criança.

Um dia, houve a criação.

Um dia ela será um milagre livre do acaso.

O desespero da arte...
era sobre isso que eu falava

O desespero da arte e sua tentativa
desesperada de criar o perene...

...através do perecível

Com palavras, sons, pedras, cores...

De maneira que o espaço, tornado forma,
possa perdurar além do tempo.

Arte impiedosa.

Que tarefa!

Arte impiedosa, sem qualquer misericórdia com
a dor humana que não é nada para ela.

Nada a não ser uma existência transitória
um mero acessório...

...que não vale mais do que as palavras,
os minerais, os sons...

...e como eles, útil somente na busca
e na descoberta da beleza.

A descoberta da beleza...
numa repetição constante.

Numa repetição constante.

A beleza se revela assim ao homem...
...como a crueldade...?

Como a crueldade... crueldade crescente.

A beleza se revela como crueldade,
a crueldade crescente dos jogos sem regra...

...que prometem a chave
do prazer infinito.

Um prazer voraz...
desdenhoso do conhecimento...

Prazer de um fictício infinito interesse...
que pode, sem hesitar, infligir a dor e a morte

e mais...que pode, sem hesitar
infligir a dor e a morte...

... já que tudo isso de passa no reino da beleza...

...na periferia – a distante periferia.

A distante periferia
só acessível ao olhar

Só acessível ao olhar, e...

e por ele acessível na duração terrestre...

mas inacessível à humanidade,
às tarefas humanas.

Então, a beleza se revela ao homem
como uma lei.

Mas uma lei estranha ao conhecimento

Uma estranha lei que revela a ruína da beleza,
que impõe si mesma como uma lei...

5 comentários:

menina disse...

é.. tb acho que a arte... é sair de si mesmo...

profundo, e bonito.
=*

paula r. disse...

Godarzinho!!!

Anônimo disse...

sabe saudade? tá muita.

isso não é bom.

e o que também não é bom é a impossibilidade de ler todos os seus textos. estou trabalhando demais. me salva?

um beijo maior que tem.

Anônimo disse...

me da mais 3 chances?

T.

Mãecela disse...

pô... godard é fogo. chega arrepiei. te mandei e-mail... recebeu? =)

=**************