1.6.08

Cap. 28, pgs 196-197.

_Compreenda-me, Ronald - falou Oliveira, apertando-lhe um joelho - Você é muito mais do que sua inteligência, é óbvio. Esta noite, por exemplo, aquilo que nos está acontecendo, agora, aqui, é como um desses quadros de Rembrandt onde apenas brilha um pouco de luz num canto, e não é uma luz física, não é isso que tranquilamente você chama e situa como lâmpada, com suas velas e volts. O absurdo é acreditar que podemos apreender a totalidade daquilo que nos constitui neste momento ou em qualquer momento, e intuí-lo como algo coerente, algo aceitável, se você prefere. Cada vez que entramos numa crise, o absurdo se torna total. É preciso compreender que a dialética somente pode arrumar os armários nos momentos de calma. Você sabe perfeitamente que no ponto culminante de uma crise procedemos sempre por impulso, ao contrário do previsível, praticando a barbaridade mais inesperada, e pode se dizer que, precisamente nesse momento, se verificará uma situação de realidade; não lhe parece? A realidade precipita-se, mostra-se com toda a sua força e, então, a nossa única maneira de enfrentá-la consiste em renunciar à dialética, essa é a hora em que damos um tiro em alguém, em que pulamos do navio, em que tomamos um tubo de Gardenal, como Guy, em que libertamos o cachorro de sua corrente, em que fazemos qualquer coisa que nos ocorra. A razão só nos serve para dissecar a realidade na calma, ou para analisar as suas futuras tormentas, nunca para resolver uma crise instantânea. Todavia, essas crises são como demonstrações metafísicas, meu caro, um estado que, talvez, se não tivéssemos seguido pelo caminho da razão, seria o estado natural e corrente do pitecantropo ereto.

_ Está muito quente, tenha cuidado - advertiu a Maga.

_E essas crises que a maioria das pessoas considera escandalosas, absurdas, eu pessoalmente tenho a impressão de que servem para mostrar o verdadeiro absurdo, o absurdo de um mundo ordenado e calmo, com um quarto onde diversos caras tomam café às duas da manhã, sem que, realmente, nada disso tenha o menor sentido hedonista, o bom de estarmos ao lado deste aquecimento que se prolonga tão gostosamente. Os milagres nunca me pareceram absurdos. O absurdo é aquilo que os precede e o que vem depois.

Cortázar, Julio. O Jogo da Amarelinha.